20/01/2008

André Ferrer
Sinais misteriosos

Não é à toa que a terapêutica freudiana tem a palavra como instrumento. Palavra dita, de preferência, durante um sem-número de sessões.

Na forma escrita, ela também pode melhorar personalidades. Tanto é que o desvio sempre chega romanceado às futuras gerações, transformando-se, no correr do tempo, numa espécie de charme indispensável para a construção de um gênio literário.

Mas a escrita, mesmo que o escritor jamais publique uma linha, pode significar a cura de muitos males psicológicos.

Eu mesmo, um caso típico de sociofobia, estou em franca recuperação.

Escritor de nascença, percorri o caminho fácil que do pediatra passa pela Mãe Joaquininha, benzedeira de renome — sim, trata-se, aqui, de uma versão tupiniquim de Wood Allen — e naturalmente termina no divã do analista, para, só depois de ter levado a sério a escrita, viver os primeiros indícios de sanidade.

Apesar dos avanços, mantenho os pés no chão. Sei muito bem que não existe milagre ou panacéia. Certos aspectos da minha sociofobia são incuráveis. Quando estou com alguém, por exemplo, sinto que a pessoa responde a determinados sinais, algo como um letreiro vermelho, que apaga e acende, informando-a particularmente sobre o instante preciso no qual termina um ato e começa outro.

Da minha parte, nunca sei quando é o momento certo de representar. Falo as verdades que a realidade merece. Sofro. Passo por imaturo. Talvez por não dominar a arte da hipocrisia; pré-requisito, eu sei, pois todo o mundo maduro e civilizado parece dominar essa técnica.

Sendo assim, escrever não é nada. Toda a paciência, o comprometimento e a solidão necessários para mentir escrevendo nem se comparam à dinâmica do teatro, uma criação coletiva, simulação da vida por excelência.

Melhor, então, ter nascido ator! Só assim viveria em dois universos distintamente apartados e não me sentiria tão confuso a respeito de quando e onde parar... ou recomeçar a encenação.

17/01/2008

André Ferrer
Banana mais uma vez

Ainda não entendo claramente o processo pré-candidatura nos EUA. Confesso que já tentei acompanhar tal escalada ao cargo político mais importante do mundo, mas fui atacado pela mesmice que deve ser um pleito em qualquer canto da Terra e desisti. Pior: acabei decepcionado com aquela cachorrada em cima de Gore.

Bush ganhou e o caso das urnas mal-e-porcamente apuradas obscureceu a política norteamericana cá dentro de mim. Logo eu, que tinha em tão boa conta o suposto poder da massa crítica nos EUA! Tive que aprender uma coisa: massa crítica e massa de manobra existe em todo o canto, travando um cabo de guerra com resultados imprevisíveis.

Ouvi dizer que fizeram greve de IPTU no Rio. Como é ano de eleições, esta seria uma forma de impedir o uso de mais dinheiro nas obras eleiçoreiras do governo situacionista.

O prefeito respondeu imediatamente. Por causa da multa, segundo ele, o atraso nos pagamentos aumentará a receita em vez de diminuí-la, como desejam os manifestantes. Banana, mais uma vez, para quem procura sensibilizar a maioria dormente sobre o negro porvir.

16/01/2008


André Ferrer
Caixa de comentários

Outro dia, num daqueles espaços em branco retangulares que, nos blogs, são destinados aos comentários, fui provocado a informar as minhas inclinações políticas e ideológicas. Pelo teor da provocação, também conheci algo do meu interlocutor: duas, pelo menos, das suas principais facetas.


Em primeiro lugar, ele concordava com a perpetuação da CPMF, o ex-imposto patrocinador do populismo em voga, ou melhor, da permanente campanha eleitoral do partido-governo. Em segundo lugar, pertencia à mais nova Igreja De Cristo Agora Sim Comprometida Com A Verdade Em Detrimento Das Outras Religiões. Amigo do Criacionismo e da reclassificação da novela das oito, empenhava-se para convencer o mundo de que o macaco clone é uma obra do inimigo.


Nada mais irritante, pensei comigo. Eu esperava que um argumento evasivo e leve me ocoresse para espantar comprometimentos. O quê dizer a um “petulista” (mistura de petista, populista e petulante), que vive para desenterrar a velha choradeira bolchevique? E quando a mesma pessoa é um desses neoprotestantes que, invarivelmente, também são pregadores de jardim, teólogos por correspondência e analfabetos funcionais, e que sempre estão prestes a atacar a engenharia genética ou a defender a censura?! Para complicar, apresentei-me como iluminista.


— Iluminista?!


O sujeito não sabia. Tinha experiência com tucanos e macumbeiros. Era "versiculado e capitulado" nos mais efetivos argumentos contra os infiéis e as privatizações de Fernando Henrique Cardoso. De iluminista, no entanto, parecia nunca ter ouvido falar.
Justamente você, pensei comigo, cria de Lutero e Marx?! Você, cuja existência só é possível graças ao esforço iluminista desses dois alemães no que diz respeito ao direito à liberdade de pensamento e à informação?!


Ele não sabia. Lado a lado com a Bíblia e O Capital, em algum lugar da memória, não estariam Voltaire, a Bastilha, o rei recluso em Versailles, a guilhotina e o esfumado rosto de uma longínqua professora de quinta série? Inacreditável que uma pessoa tenha passado pelos bancos da escola sem se reconhecer, nem por um segundo, como herdeiro das Luzes! I-na-cre-di-tá-vel!


O Iluminismo, também chamado de Esclarecimento (Aufklärung, na língua alemã, Enlightenment, na inglesa, Illuminismo, em italiano, Siècle des Lumières, na língua francesa e, no espanhol, Ilustración), foi um movimento intelectual e filosófico surgido na segunda metade do século XVIII, tendo a Razão e a Ciência como formas de explicar o Universo. Após a sua disseminação, impulsionou a sociedade moderna, principalmente nos países protestantes, sendo gradual e lenta a sua influência nos países católicos. O capitalismo e, ironicamente, o marxismo são apropriadores das idéias alardeadas naquele período. Se a liberdade e a igualdade inspiraram a burguesia nascente contra a nobreza e o clero, também estavam nos corações e nas mentes dos comunistas, mais de duzentos anos depois, durante a Revolução Russa.